23.9.04

Tila Hood, ou a versão portuguesa do Robin

A Otília é uma mulher de armas. Idade tão indefinida como a cor do cabelo (sempre apanhado num rabo de cavalo teimoso), trabalha com a força e genica de quem é simples, todos os dias, incansavelmente. Fala alto, refila muito, se lhe cai alguém no goto, é um anjo, uma querida, uma jóia, se há alminha que toma de ponta, rosna baixinho enquanto atira a bica ou o combinado para cima do balcão.
Hoje, (e tenho a dizer-vos que vou cometer uma inconfidência) ouvi uma conversa entre a Tila e um homem velho de rosto, encolhido na roupa muitos números acima do dele, acabrunhado nas nódoas de tinta e no pó que um servente carrega consigo. O homem que parecia avô de longa data, tinha pouco mais que 50 anos e a miséria estampada na alma. A Tila aconselhava, admoestava, dava exemplos de desgraça familiar, lembrava que era preciso afastar-se das más companhias, não beber, e ter sempre dinheiro que chegasse para a renda do quarto. Que não se apoquentasse com o dinheiro do almoço, pagava o patrão no final da semana, e quanto à bucha da manhã, era por conta dela, que a gente aqui com tantos ricos, também nos há-de sobrar alguma coisinha para quem precisa.
Escusado será dizer que poisei os talheres no prato...
Sobrar para quem precisa? Enquanto vivermos na ilusão de que é com as sobras que matamos a fome aos males do mundo, não há Tilas nem lições de humanidade que nos valham.

22.9.04

Que vergonha, Portugal!

Colocação Manual dos Professores Adia Resultados do Concurso para Final de Setembro

«Se dúvidas houvesse quanto à possibilidade de todos os professores ficarem colocados até 23 de Setembro, o último dia estabelecido pelo Governo para o início do ano lectivo, as piores expectativas confirmaram-se ontem. Depois de mais um prazo falhado, ao princípio da noite de ontem, a ministra da Educação, Maria do Carmo Seabra, anunciou que, afinal, as listas definitivas do concurso de docentes serão conhecidas "a 30 de Setembro, o mais tardar".
Em causa está o destino de cerca de 50 mil candidatos ao concurso de destacamento e afectação que, só então, saberão em que escolas vão dar aulas. Isto se o Ministério da Educação (ME) conseguir cumprir esta última fase, que não se afigura fácil. Depois de todas as falhas, a tutela decidiu abdicar do programa informático que estava a gerir as colocações de professores e vai avançar com o processo manualmente.»


in Público

21.9.04

Reflexões de fim de tarde


Porque se dormem sestas deliciosas nos jardins da Casa-Museu Rodin e porque hoje estou num destes dias: pensativa qb, venha de lá esse cigarro e serei definitivamente pessoana.

Outras margens

Durante anos bebi as palavras de Maria Rosa Colaço ao som dos Trovante, enquanto imaginava o meu destino-quase...

Outra margem

E com um búzio nos olhos claros
Vinham do cais, da outra margem
Vinham do campo e da cidade
Qual a canção? Qual a viagem?

Vinham p’rá escola. Que desejavam?
De face suja, iluminada?
Traziam sonhos e pesadelos.
Eram a noite e a madrugada.

Vinham sozinhos com o seu destino.
Ali chegavam. Ali estavam.
Eram já velhos? Eram meninos?
Vinham p’rá escola. O que esperavam?

Vinham de longe. Vinham sozinhos.
Lá da planície. Lá da cidade.
Das casas pobres. Dos bairros tristes.
Vinham p’rá escola: a novidade.

E com uma estrela na mão direita
E os olhos grandes e voz macia
Ali chegaram para aprender
O sonho a vida a poesia.

Neste mês de Setembro, a margem espraiou-se: em olhares e culturas díspares que tenho novamente o privilégio de ensinar, nos sorrisos de quem me sente a falta e aponta o dedo com o carinho acusatório permitido apenas aos que amamos, nas margens brancas e cremes do papel de 70 ou 80 g que escolho laboriosamente para os livros que agora me nascem das mãos...
Margem-carinho-dom-papel-história.
Margem-fronteira-voo-encontro.
Margem de mim, margem em branco...
Só hoje reparei quanto gosto desta palavra feita espaço: MARGEM.
É bonita, não é?

4.9.04

Êxodos quotidianos


Bombaim, Índia, 1995 - Sebastião Salgado

Ao ver mais imagens de horror sobre a Ossétia, lembrei-me da exposição do Sebastião Salgado que vi há uns quatro anos no Parque das Nações. Fui sozinha e agradeço esse acaso fortuito da não-companhia pelas memórias vivas que as fotografias me deixaram. Gente. Gente que não incomoda porque está longe, que não maça porque não é notícia, que vai sofrendo porque acredita no remedeio de um quotidiano triste.
«Church Gate é a estação final da Western Railroad, que traz 2,7 milhões de passageiros para Bombaim todos os dias.»
A estação final?

Mudança(s)

Quando o meu amor parece não chegar para os remendos de ti, sinto-me perdida.
Hoje, baloicei na chuva forte de um enlace cuja música me enterneceu. Ouvi palavras sábias. Ri.
Demoro os olhos entre sopros de bolas de sabão. Recortes de tempo-saudade. Mudança.
Que o fim que te assusta seja início. Deixa-me apenas secar-te as lágrimas e aninhar-me no futuro nosso.