28.12.04

HUMANOS



Sempre tive um fascínio pela figura de António Variações. A provocação genuína da imagem, da postura, de uma música inconfundível.
A surpresa deste Natal foi este disco de inéditos em que já me viciei: Humanos

Quero é viver

Vou viver
Até quando eu não sei
Que me importa o que serei
Quero é viver

Amanhã
Espero sempre um amanhã
E acredito que será
Mais um prazer

E a vida
É sempre uma curiosidade
Que me desperta com a idade
Interessa-me o que está pra vir

E a vida
Em mim é sempre uma certeza
Que nasce da minha riqueza
Do meu prazer em descobrir
Encontrar, renovar, vou fugir ao repetir

19.12.04

Percepções de mim

Tenho andado inquieta com uma característica muito minha, que sempre considerei mais feitio do que defeito, e que ultimamente me faz parar e pensar mais do que é costume.
É um misto de discrição e delicadeza-questional.
Se não te contam, não perguntes.
Se não partilham, não insistas.
Se a conversa te está a passar ao lado, não faz mal, é assim que as coisas são, e provavelmente não será para tu entenderes.
Toda a minha vida tenho agido assim. Por delicadeza, por não me querer intrometer, por não querer mostrar curiosidade metediça, por não querer incomodar, deixo passar momentos, deixo cair pessoas que amo com uma terrível sensação de coração apertado e dever cumprido. (porque todos sabem, obviamente, o quanto gosto deles e que estou sempre deste lado...)
Agora acordo tantas mais vezes a sentir-me perdida nesta minha postura correcta... e vazia.

17.12.04

Horas extraordinárias

Foi a saudade do teu braço
e o olhar que já da tua luz me dói
trabalhei sem dar pelo cansaço
horas extraordinárias,
foi um dia que passou num furacão
um furacão que se amainou, só
quando aparte o amor eu me vi só
atirando a moeda ao ar
diz-me que cara ou coroa eu vou ganhar
diz-me quanto eu fiz bem em me apostar
e que bem fiz em ter por necessárias
as horas extraordinárias

E assim que volto ao meu lugar
reencontro com dor e prazer
o coração que fiz falar
à máquina de escrever a ver
ela a dar corda à máquina de amar
e um coração a se amainar só
quando aparte o amor eu me vi só
atirando a moeda ao ar
diz-me que cara ou coroa eu vou ganhar
diz-me quanto eu fiz bem em me apostar
e que bem fiz em ter por necessárias
as horas extraordinárias

Sérgio Godinho

As sonoridades foram as do Irmão do Meio. As fantásticas vocalizações, da Sara Corte Real. As músicas, mais interventivas que românticas, únicas como sempre.
E assim foi a noite passada.

16.12.04

Sentir a dor dos pobres

«Pobres, sempre os tereis convosco» (Jo 12, 8). Quem disse isto, há 2000 anos atrás, sabia do que falava. Jesus Cristo conhecia demasiado bem o coração humano para arriscar a frase. No entanto, Jesus não disse que a pobreza era uma inevitabilidade. Bastaria que fosse diferente o tal coração humano.
Hoje, mais do que nunca, a pobreza não tem razão de ser. Nunca o mundo esteve mais capaz de combater a que existe, nem mais apto a prevenir a que há-de vir. Por isso, só a distracção comodista evita que nos interroguemos com João Paulo II: «Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se?» (NMI 50). Apesar da riqueza disponível, talvez estejamos no tempo da História que mais pobres gera. E todos sabemos como se fabrica a pobreza.
Coimbra. Esta cidade que se quer culta, esta cidade de classe média, farta e segura, razões tem, de sobra, para saber eliminar a pobreza. Coimbra, doa a quem doer, não só tem muitos pobres, como os esconde, decididamente.
Fazendo justiça a todas aquelas e a todos aqueles que, na Igreja e fora dela, dedicam as suas vidas ao serviço dos pobres, não podemos deixar de nos interrogar. 40.000 crianças vivem, em Portugal, na mais extrema das pobrezas. Quantas dessas crianças moram em Coimbra? A resposta é: não sabemos. A cidade tem várias dezenas de sem-abrigo. Quantos são? Não sabemos. Não sabem os técnicos que com eles trabalham. Não há estudos globais, nem estatísticas comparadas, nem trabalho coordenado. Há tentativas, pequenos passos e muita vontade de acertar por parte dos poucos samaritanos que se dispõem a parar nas margens da cidade. O certo é que Coimbra vive como se os seus pobres não existissem. Quando não os pode encurralar em guettos físicos (o Ingote, a Rosa) empurra-os para guettos simbólicos, escondendo-os e escondendo-se deles, fingindo que os vapores do perfume, a roupa de marca e os sorrisos de plástico para a imprensa cor-de-rosa hão-de apagar o cheiro, a imagem e a dor dos imigrantes sem papéis, dos velhos sem dinheiro, sem companhia e sem saúde, dos ciganos olhados de soslaio, ou dos sem-abrigo-e-sem-horizontes.
E os cristãos de Coimbra sabem? Não, não sabemos. Descansamos as nossas vagas inquietações nos ombros dos Vicentinos, dos Grupos Sócio-Caritativos, das Criaditas dos Pobres. Os miseráveis mais problemáticos entregamo-los à Caritas, à Abraço, à AMI, etc, etc. Os mais perigosos estão bem entregues aos técnicos e às polícias (porque, para o nosso olhar normal, ser toxicodependente, prostituta ou portador de SIDA não é fruto da pobreza, é CULPA!).
Deste modo descansa o Povo de Deus. Assim dorme em paz, como se não fosse «chegada a hora de despertar porque a salvação está mais próxima» (Rom 13, 11). Assim celebra, pacificado, a Eucaristia Dominical. Assim atravessa o Advento, ignorando o apelo à conversão que João Baptista continua a clamar no deserto: «Preparai os caminhos do Senhor» (Lc 3, 4). Assim se comove com o Natal do Menino Deus, que veio para que «todos tivessem a vida e a tivessem em abundância» (Jo 10, 10). Assim se aproxima da Páscoa. Assim percorre o ano todo, vibrando, aqui e além, com uma desgraça ou outra, acontecida longe, no mundo.
É porque somos uma Comunidade Cristã que nos dói mais esta realidade. Porque fazemos parte desta doce inoperância, desta confortável demissão. Não desconhecemos, contudo, os limites do problema. Sabemos que a resolução do mesmo não se confina ao adro das Igrejas, nem ao íntimo das consciências.
Com o mesmo vigor denunciamos a sociedade civil, aquela que se baba nas páginas de jet-set das nossas revistas e jornais, aquela outra que "apenas" cuida de si e dos seus, nunca se dignando baixar os olhos para a pobreza que resta. Esta sociedade civil confortada e próspera, em Coimbra e no resto do país, é o terreno em que germina o pecado da recusa em aceitar todo o outro como pessoa e da negação do bem comum, materializado na fuga aos impostos, na exploração do trabalho precário ou na mercantilização da natureza e dos seus dons.
Todos nós, uns e outros, crentes ou não, somos responsáveis pelas lágrimas dos pobres. Nas nossas mãos está o poder de mudar o rumo das coisas, o poder de corrigir as iniquidades do sistema económico que consentimos, as injustiças da Sociedade que construímos. Só que nada faremos enquanto andarmos distraídos com orações egoístas, com Natais comerciais, com cristianismos teóricos, com evangelhos de papel.
O contributo desta Comunidade, aflita com as suas próprias contradições, vai no sentido de ajudar a reflectir o sentido profundo do Natal: a partilha de humanidade que Deus quis fazer, tornando-se pessoa, pobre entre os pobres.

Texto de Natal da Comunidade de Acolhimento João XXIII

15.12.04

Estou em obras

ou... porque tenho eu um blog?
Agradecem-se comentários, sugestões e divagações metafísicas.
Muito obrigada.

10.12.04

(ir)responsabilidade social

Não gosto de representar a realidade. Não gosto de fingir uma postura que não a minha, um sorriso de ocasião, um ar de profissional oco. Não gosto de ter que fugir com os olhos para o céu, não gosto de não assumir as minhas responsabilidades, mas há muitas coisas responsáveis que não gosto de fazer. Não me sinto bem, não me fazem feliz, não me ajudam a ver o que de melhor posso dar a este mundo. Não gosto, não gosto, não gosto.

9.12.04

Hoje, Mozart toca baixinho

Faz hoje nove anos que partiste. De repente, sem avisar, sem despedidas, imprevisível como foste toda a vida.
Não me lembro de ter sentido outra dor tão funda. Passei da incredulidade à tristeza muita, senti-me abandonada, perdida, sem o porto seguro do teu cabelo cor de prata e do riso que se ouvia no fim da rua.
Tenho saudades e sei que continuas perto, a ensinar-me desta vez o verdadeiro significado da vida eterna.
Obrigada avô.

8.12.04

Saboreando palavras I

E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder

Manuel Alegre

7.12.04

Enfim sós

Não vou ter tempo, eu sei que não vou ter tempo. São sete e meia e tenho que me despachar. Depressa. Se eu lhe desse mais um retoque ficava realmente perfeito... mas não vou ter tempo e é-me impossível acabar assim...

A luz começa a ser intensa, demasiado intensa para os meus olhos. A claridade devia manter sempre o mesmo tom áureo, que não fere a vista e consola o olhar. Não era preciso terem-lhe acrescentado tonalidades. Se o amarelo lhe assentava tão bem, porquê ir à procura de laranjas, vermelhos e ocres? Quem deseja a cada dia mais do que a satisfação quotidiana devia ser obrigado a praticar o estoicismo e a sábia postura da aurea mediocritas. Isso sim era um modo de vida! Mas de que me vale divagar, continuo a sentir-me incomodado com esta luz forte e a sabedoria dos clássicos foi há muito esquecida.

Custa-me tanto ter que pedir mais uma vez um adiamento! Prazos são prazos dirá Mme Claire, e eu, no fundo longínquo da linha telefónica, limitar-me-ei a sussurrar um... desculpe Mme... não torna a acontecer, mas a Mme compreende... parece que falta ainda qualquer coisa, não está bem como eu quero...

Está frio aqui dentro. Se aquela réstia de luz estivesse mais perto ainda me conseguiria aquecer, mas não há maneira. Desde que me lembro que sinto frio, um frio que tem cheiro a azul e gela. Não consigo perceber porque não há roupa suficientemente grossa para me aquecer. Meias de lã, camisa de flanela, camisola sobre camisola, galochas, casaco impermeável... nada, nada é suficiente.

Preciso de me concentrar. Talvez seja melhor folhear uns livros ou falar com mestre Pierre antes de deitar mãos à obra. Pode ser que descubra a falha. Será que estou a romancear uma imagem de homo habilis? Não acredito em heróis, mas sinto que este homem tem algo para dizer ao mundo... e eu, eu permaneço surda.

Estou só, como gosto de estar. Ela não insistiu na companhia, valha-nos isso! Sinto-me bem na solidão de ser apenas eu, um eu com frio, é certo, mas inteiro, de pé, olhar perdido na postura viril do homem que represento.

Prefiro deixar de lado a figura central e dedicar-me ao cenário. Sim, é isso: dedicar-me ao cenário é a solução. Não gosto de sentir este vazio e um cenário real rouba a solidão de uma imagem... humm...

É triste quando não nos escutam. Sobretudo porque todos gritam incessantemente certezas e dúvidas, medos, mágoas, mentiras, misérias mil que exigem ser escutadas. Hoje sinto-me mal por ser a primeira vez que grito. Talvez seja a estranheza do gesto ou quem sabe a ausência de uma resposta a um grito tão simples como: Tenho frio!

O mundo é teu nesse barco. Esse olhar que me lanças... se não fosse do cansaço que sinto diria que parece uma súplica... queres dizer-me alguma coisa Capitão? Sabes, gosto de te ver. Gosto da humilde altivez do teu gesto Alphonse... Capitão Alphonse soa bem não achas?

Talvez aquecesse se fumasse um pouco. Se o calor se negar ao corpo, sempre posso iludir-me com o fumo. Mil raios! Tenho os fósforos ensopados. Deve ter sido do temporal desta noite. Chuva não S. Pedro, basta o frio, que a chuva dá-nos cabo do serviço. Cala-te velho tonto... de que vale invocar santos ou deuses? Não são eles que traçam o nosso destino, esse, está noutras mãos...

O mar está-te dentro dos olhos, tens a faina no calejado das mãos e a luz tisnou-te a pele do rosto e desapareceu. Vês Capitão? Vês como vale a pena sermos exigentes?...
Amanhã bem cedo telefono a Mme Claire. Invento uma qualquer desculpa, não me importa. Nem sequer ouvirei os seus gritos, dir-lhe-ei apenas: falhei. É mentira e tu sabe-lo Capitão Alphonse. Hoje, aqui, contigo, acredito naquele verso que diz que «não há passos divergentes para quem se quer encontrar». A alegria de te perceber vivo naquilo que imagino é bem maior do que uma simples percepção da realidade, ultrapassa todas as obrigações. Além disso Alphonse, amanhã bem cedo, terei tempo de te vir acender o cachimbo...

6.12.04

Sweet dreams

Estou quase tão funguenta como a Amélia nas histórias de amor, e só tenho os olhos suficientemente abertos para deitar um olhar guloso aos cobertores da minha cama.
Viva as constipações! Viva o sol de Inverno! Viva a família Von Trapp e os sonhos bons...

When the dog bites,
When the bee stings,
When I'm feeling sad,
I simply remember my favorite things,
And then I don't feel, so bad.

Amélia, a fada cor-de-rosa

Amélia, a fada cor-de-rosa, adorava voar a grandes velocidades!
Montava apressada na sua vassoura, esquecia-se dos travões e voava veloz sobre os telhados das cidades.
Amélia gostava das luzes que via e espreitava às janelas sempre que podia.
Às vezes tinha medo que a vissem. Afinal era uma fada, daquelas que espalham grãos de lua pelas almofadas, e enchem todos os sonhos de magia.
Mas Amélia não era uma fada vulgar! Tinha um sapo de estimação e uma varinha de encantar, gostava de morcegos e de histórias de arrepiar.
Comia pipocas quando ia ao cinema e fungava tão alto nas histórias de amor, que as pessoas sentadas nas outras cadeiras julgavam que o filme era de terror!

Amélia... são horas de acordar...
Os sonhos voltam logo à noitinha, à hora em que as estrelas começam a dançar ao som da lua que canta sozinha.

5.12.04

Coisas Pequenas

'Coisas pequenas são
coisas pequenas
são tudo o que eu te quero dar
e estas palavras são
coisas pequenas
que dizem que eu te quero amar.
Amar, amar, amar
só vale a pena
se tu quiseres confirmar
que um grande amor não é
coisa pequena
que nada é maior que amar.
E a hora que te espreita
é só tua.
Decerto, não será
só a que resta;
a hora que esperei a vida toda,
é esta.
E a hora que te espreita
é derradeira.
Decerto já bateu
à tua porta.
A hora
que esperaste a vida inteira,
é agora.'

Madredeus

Nos últimos meses tenho andado mais atenta às coisas pequenas. Uma palavra de estímulo, um olhar cúmplice, uma mensagem a lembrar a nossa presença na vida dos outros, um rebuçado na secretária quando chego à editora depois do almoço, um bebé que cresce e nos enche já o coração, uma música, uma hora de sol num dia chuvoso, uma conversa, uma carta, um abraço apertado...
Tem piada que nos grandes catálogos de valor da humanidade, nada disto estará taxinomizado como coisas preciosas. Não se quantificam, não dão estatuto, não acrescentam nada à conta bancária, não asseguram um presente luxuoso nem um futuro brilhante. São, simplesmente, as coisas pequenas mais importantes da vida: AMOR.

2.12.04

U.K.

Cheguei da minha ilha com um motivo de comemoração: a queda do governo.
Cheguei da minha ilha triste por perceber que tanta gente nova e brilhante e cheia de vontade de trabalhar não pode regressar porque não tem a menor perspectiva de futuro.
Cheguei da minha ilha com um sorriso cheio de iluminações de Natal, cheirinho bom a biscoitos de gengibre, chocolate quente e pessoas que andam com cestos de compras atulhados... nas livrarias.
Cheguei da minha ilha com vontade de regressar e fazer alguma coisa de útil, nem que seja ser assim muito feliz.