7.12.04

Enfim sós

Não vou ter tempo, eu sei que não vou ter tempo. São sete e meia e tenho que me despachar. Depressa. Se eu lhe desse mais um retoque ficava realmente perfeito... mas não vou ter tempo e é-me impossível acabar assim...

A luz começa a ser intensa, demasiado intensa para os meus olhos. A claridade devia manter sempre o mesmo tom áureo, que não fere a vista e consola o olhar. Não era preciso terem-lhe acrescentado tonalidades. Se o amarelo lhe assentava tão bem, porquê ir à procura de laranjas, vermelhos e ocres? Quem deseja a cada dia mais do que a satisfação quotidiana devia ser obrigado a praticar o estoicismo e a sábia postura da aurea mediocritas. Isso sim era um modo de vida! Mas de que me vale divagar, continuo a sentir-me incomodado com esta luz forte e a sabedoria dos clássicos foi há muito esquecida.

Custa-me tanto ter que pedir mais uma vez um adiamento! Prazos são prazos dirá Mme Claire, e eu, no fundo longínquo da linha telefónica, limitar-me-ei a sussurrar um... desculpe Mme... não torna a acontecer, mas a Mme compreende... parece que falta ainda qualquer coisa, não está bem como eu quero...

Está frio aqui dentro. Se aquela réstia de luz estivesse mais perto ainda me conseguiria aquecer, mas não há maneira. Desde que me lembro que sinto frio, um frio que tem cheiro a azul e gela. Não consigo perceber porque não há roupa suficientemente grossa para me aquecer. Meias de lã, camisa de flanela, camisola sobre camisola, galochas, casaco impermeável... nada, nada é suficiente.

Preciso de me concentrar. Talvez seja melhor folhear uns livros ou falar com mestre Pierre antes de deitar mãos à obra. Pode ser que descubra a falha. Será que estou a romancear uma imagem de homo habilis? Não acredito em heróis, mas sinto que este homem tem algo para dizer ao mundo... e eu, eu permaneço surda.

Estou só, como gosto de estar. Ela não insistiu na companhia, valha-nos isso! Sinto-me bem na solidão de ser apenas eu, um eu com frio, é certo, mas inteiro, de pé, olhar perdido na postura viril do homem que represento.

Prefiro deixar de lado a figura central e dedicar-me ao cenário. Sim, é isso: dedicar-me ao cenário é a solução. Não gosto de sentir este vazio e um cenário real rouba a solidão de uma imagem... humm...

É triste quando não nos escutam. Sobretudo porque todos gritam incessantemente certezas e dúvidas, medos, mágoas, mentiras, misérias mil que exigem ser escutadas. Hoje sinto-me mal por ser a primeira vez que grito. Talvez seja a estranheza do gesto ou quem sabe a ausência de uma resposta a um grito tão simples como: Tenho frio!

O mundo é teu nesse barco. Esse olhar que me lanças... se não fosse do cansaço que sinto diria que parece uma súplica... queres dizer-me alguma coisa Capitão? Sabes, gosto de te ver. Gosto da humilde altivez do teu gesto Alphonse... Capitão Alphonse soa bem não achas?

Talvez aquecesse se fumasse um pouco. Se o calor se negar ao corpo, sempre posso iludir-me com o fumo. Mil raios! Tenho os fósforos ensopados. Deve ter sido do temporal desta noite. Chuva não S. Pedro, basta o frio, que a chuva dá-nos cabo do serviço. Cala-te velho tonto... de que vale invocar santos ou deuses? Não são eles que traçam o nosso destino, esse, está noutras mãos...

O mar está-te dentro dos olhos, tens a faina no calejado das mãos e a luz tisnou-te a pele do rosto e desapareceu. Vês Capitão? Vês como vale a pena sermos exigentes?...
Amanhã bem cedo telefono a Mme Claire. Invento uma qualquer desculpa, não me importa. Nem sequer ouvirei os seus gritos, dir-lhe-ei apenas: falhei. É mentira e tu sabe-lo Capitão Alphonse. Hoje, aqui, contigo, acredito naquele verso que diz que «não há passos divergentes para quem se quer encontrar». A alegria de te perceber vivo naquilo que imagino é bem maior do que uma simples percepção da realidade, ultrapassa todas as obrigações. Além disso Alphonse, amanhã bem cedo, terei tempo de te vir acender o cachimbo...

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