20.7.04

Flor I

A Primeira Flor
por Joaquim Fidalgo
 
E ele pega na tulipa, uma vermelha, dá dois passos disfarçados até à mesa da Ti Arminda...
À pastelaria deu-lhe para vender flores naquele dia. Simpatia aos clientes ou faro de negócio, fosse o que fosse, junto à caixa havia uma grande jarra de tulipas a um euro cada, vermelhas, brancas, amarelas, as pessoas iam pagar e ficavam admiradas, isto é para vender?, que sim, que era, Dia dos Namorados, não sabe?, a patroa achou que talvez... "Então dê-me uma, por favor, não, essa não, posso escolher?", claro, faça o favor, e o rapaz escolhia, e lá ia à mesa entregar a flor à namorada e ela oferecia-lhe o beijo que ia escrito naquela tulipa, e depois de um beijo outro beijo, e um brilho nos olhos, e as mãos, as mãos, e os clientes em volta olhavam cúmplices, género olhar sem olhar mas ver, e sorriam lá para eles de ternura, ar aprovador, que coisa bonita!, as flores é assim, mesmo quem não as dá acha bem vê-las dadas.
Era uma pastelaria de bairro, clientela mista, ora pares de jovens a conversar, ora gente de mais idade, gente simples, trabalhadeira, dali, de se sentar na mesa certa, as empregadas conhecendo por nome, então Ti Arminda, isto hoje é que está um frio!, o galãozinho do costume e meia torrada?, pois sim, a ver se aqueço, sai também o cafezinho do senhor Sousa, bem curto, pelo meio um dedo de conversa, assim, estar.
E o senhor Sousa, ar de operário já nos cinquentas, calça coçada e casaco de todos os dias, um cigarro sem filtro ao canto da boca, de repente vê aquelas flores, chega-se ao balcão e pergunta de que são, ri-se maroto, vê ali um parzinho com tulipa, além mais outro, e resolve-se: em segredo, dê cá uma dessas, ó Maria, e a Maria rindo, isso mesmo, senhor Sousa, e ele pega na tulipa, uma vermelha, dá dois passos disfarçados até à mesa da Ti Arminda, de repente levanta o braço, a tulipa brilhando por todos os lados, pega lá, mulher!. O quêêê?!...., o que é isso, homem?!.... é uma flor, não estás a ver?, e p'ra que é?!... é p'ra ti, poça!, então não queres?... p'ra mim?!.... ai minha Nossa Senhora!, e a Ti Arminda, mulher gorda, simples, talvez vendedeira dali do mercado, saia escura e avental de grandes bolsos mais o xaile cruzado no peito, ai! aqui à frente desta gente toda!... Lá pegou na flor mas corou, corou, corou de quantos vermelhos havia, e escondeu a cara, e tudo em volta sorria, então, Ti Arminda, hoje é o Dia dos Namorados, você também tem direito a uma flor, sim senhor, senhor Sousa, assim é que é! E o senhor Sousa, cigarro na boca, sorriso gaiato, ali de pé à volta da mesa, feliz com a atrapalhação comovida da mulher, deve ter sido a primeira vez que lhe deu uma flor, não é o género, muito menos de fazer essas coisas em público, nem um beijo, são gestos de sozinhos, mas chega um dia, sabe-se lá, vê-se aquilo à volta, dá-nos um impulso, apetece. "Não gostas, mulher?..." Sim, gostava, mas não estava à espera, minha Nossa Senhora, ai que vergonha!, e corada, perdida, mas tão contente!, pegou na tulipa com as duas mãos como quem rezava. E ria, ria, tu és maluco, homem!, aquele riso nervoso, tímido e terno, e toda a gente à volta sorria, e olhava, e ria, e gostava.
Nunca é tarde para flores. 

in Público, 19/02/03 

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